Por
Marco Aurélio Marrafon
Chegamos aos últimos dias de 2014. O ano de 2015 já se anuncia como difícil, mas também cheio de desafios e esperanças. Pensei que era melhor falar do futuro. Do futuro e do direito. A ideia de fraternidade me veio à mente. Não é possível falar do futuro e do direito sem fraternidade. Não é possível falar em futuro da humanidade sem fraternidade.
Lembrando dos belos momentos compartilhados com os amigos do Grupo Cainã em encontro capitaneado pelos professores Jacinto Coutinho e Avelãs Nunes em Coimbra (2008), resgatei o texto base da coletânea resultante daqueles debates
[1] para, mais uma vez, homenagear o professor Eligio Resta, grande jusfilósofo italiano com quem muito aprendi durante o período de orientação no estágio doutoral na
Università degli Studi di Roma Tre.
Pensador dos paradoxos, Resta enfrenta os temas sempre em chave ambiguidade e reciprocidade
[2]. Possui uma leitura com alguma tinta liberal do fenômeno jurídico (em diversos momentos deixa claro sua posição contrária à intervenção excessiva do Direito) e frequentemente recorre a conceitos do funcionalismo
luhmanniano para descrever o sistema jurídico, entendido como uma ordem substitutiva da Justiça e fruto da redução da complexidade social
[3].
Filósofo consciente das dificuldades do voluntarismo e da profundidade das categorias com as quais trabalha, por diversas vezes não hesita em dar uma resposta ambígua e humilde aos questionamentos:
“O que podemos fazer? Podemos fazer tudo o que podemos fazer” ou então,
“É uma aposta que vencerá quando vencerá”[4]. Mas depois, investigando as origens das instituições e enfrentando o âmago dos temas tratados, mostra os caminhos a seguir.
Superando pré-conceitos ingênuos ou ecumênicos, Resta indica que o futuro do direito deve se dar enquanto direito fraterno, no qual a fraternidade recusa toda a hipocrisia e é entendida como a “consciência de dever de distanciar-se da lógica da inimizade e condividir espaços comuns com cada outro indivíduo, com sua vida, história e dignidade”
.
Para melhor compreender sua proposta, a coluna de hoje é um convite ao jusfilosofar livre, um exercício diferente para pensar as possibilidades futuras do direito.
Ambiguidade do direito
Em um mundo tão intolerante, Resta sustenta que definições maniqueístas do tipo bom/mau, justo/injusto são diferenciações que não se sustentam do ponto de vista social porque “a sociedade produz simultaneamente um e outro e um porque outro, uma coisa porque outra. Assim produz a ‘doença’ e seu remédio."
Ele resgata o conceito platônico de pharmakon como símbolo máximo da ambivalência, que, não por acaso, ligava a lei e a violência:
O
pharmakon era exatamente este jogo de oscilação que indicava no mesmo tempo veneno e seu antídoto, a cura e a doença, mas também a vítima e seu carrasco. O veneno tomado em dose justa se transformava em antídoto, mas ao mesmo tempo continuava a pertencer à natureza de veneno: aquilo que era a doença se tornava a cura, se invertesse um momento depois na cura que se transformava em doença. Uma não era dissociada da outra. A violência é a cura da violência. Assim, a lei deveria ameaçar e usar a violência para combater a violência; quem usava a violência era passível de uma outra violência, então o algoz se transforma em vítima
.
A imunização viria através da correta aplicação do veneno, cujo diagnóstico histórico aponta para três grandes modelos de solução utilizados socialmente:
i) dação ao sacrifício;
ii) vingança (faida), duelo, guerra e;
iii) fria violência administrada monopolisticamente por um aparato judiciário burocrático.
Este último somente se realiza com a construção do Estado que, por meio de seu aparato de soberania, monopoliza a violência e confia a um terceiro, o juiz, a última palavra sobre a violência.
Assim, para que haja a imunização, o direito moderno invoca a legalidade na tentativa de evitar todo excesso inútil de pena: a aplicação da justa dose do veneno deve ser prevista e enunciada. Daí a possibilidade de condenação ser definida em lei e a violência contar com a contabilidade administrativa de um juiz que, ao julgar, evita que ela se propague.
Segundo Resta, nesse jogo de oscilação reside toda a ambiguidade do direito:
i) É uma técnica violenta que visa enganar a violência;
ii) É técnica que tem por função impor limites à própria técnica, ex. bioética, matérias relacionadas ao meio ambiente.
Ele se torna potência (impõe um dever-ser que muitas vezes faz valer aquilo que na realidade não podemos fazer) e também remédio para uma sociedade que, doente, precisa de respostas para seus problemas.
Além de fármaco, o aparato tecnológico do direito, enquanto um sistema complexo, constitui o que ele chama de uma macchina non banale: a decisão não acontece numa relação de estímulos singulares que produzem respostas imediatas. Ele é decisão sobre uma decisão anterior (a do legislador, que, ao elaborar a lei, faz uma escolha e reduz a complexidade sistêmica no meio ambiente social), mediada por uma série de discursos produzidos em seu interior e inúmeras regras procedimentais.
A partir dessas constatações e, num contexto onde não cabem explicações de matriz jusnaturalista nem juspositivista, Resta se propõe a pensar uma forma não violenta de realização do Direito que, além de superar os dogmas jurídicos da modernidade se legitime num ambiente axiologicamente pluralista e mundializado.
Para tanto, encontra no resgate da fraternidade, promessa esquecida da Revolução Iluminista, a base para a construção do novo direito.
Superação da modernidade jurídicaNa direção de um direito não violento, assentado no resgate da fraternidade enquanto um valor a ser juridicamente protegido e, mais do que isso, promovido, o primeiro obstáculo encontrado pelo professor italiano é o modelo de soberania estatal nacional. Segundo ele, desde uma leitura contratualista, os Estados soberanos (chamados lobos artificiais) protegem os direitos fundamentais, mas possuem um vício de origem.
Esse vício ocorre porque os direitos fundamentais são a afirmação histórica da fraternidade e frutos de ideais universalistas, mas apenas encontram abertura na prática política ligados a uma realidade imaginária, a do Estado Nação, conforme aparece disposto já no artigo 3º da Declaração de 1789.
Nessa leitura, a fraternidade enunciada de maneira fortemente atrelada à ideia de soberania apresenta um grande limite à condição fraterna dos povos, uma vez que “terminava por assinalar um destino entregue ao internacionalismo mais que ao verdadeiro e próprio cosmopolitismo: aquele direito fraterno se proclamava universal mas tinha necessidade de estado e soberania”.
Pensando na realização de uma civitas maxima — isto é, uma comunidade política de cidadãos acima da cada estado — Resta compreende que a primeira condição necessária para que se possa falar de direitos fundamentais em chave universal é a remoção da ideia de soberania, tornando possível que se renuncie a nacionalismos/individualismos ilusórios, de modo que os direitos dos povos possam encontrar pertença e identidade.
Conclui, então, que a soberania é o principal obstáculo à universalização da fraternidade e ao pacifismo internacional, noção presente no escrito kantiano sobre a paz perpétua e também nos escritos do primeiro pós-guerra de Kelsen.
Em consequência, Resta pontua que o direito moderno — derivado da lógica da soberania — apresenta armadilhas que precisam ser desarmadas.
Por trás de categorias como sujeito de direito, direito subjetivo, lide e conflito, todos tutelados e/ou resolvidos pelo Estado Soberano, se esconde um código de igualdade assentado numa noção egoísta de cidadania, espécie de antropologia da inveja, na qual o direito se reduz à relação entre a pretensão de uma parte e a prestação superobrigatória de outra, onde seu objeto se resume a uma mera troca individualística.
Por isso, é necessário romper com essa tradição e resgatar alguns traços (rastros) apagados, tarefa que num primeiro momento demanda uma pesquisa da semântica histórica — na linha proposta por Koseleck — que traga à luz a riqueza multifacetada dos sentidos dos conceitos jurídicos, especialmente seus traços apagados pela tradição que trai.
E, na tradição jurídica da modernidade, o direito vencedor apagou o sentido mais essencial da solidariedade — o dever de todos, o communus da comunidade de garantir o direito do próximo — promovendo uma cidadania de bases individualistas.
Resta explica que esse sentido, ora apagado, estava presente no artigo 23 da Carta francesa de 1793, no qual se encontra a noção de que a luta pelo direito é um problema de cultura da comunidade, manifestada na previsão de que é dever de todos zelar pelo reconhecimento, manutenção e efetivação do direito de cada um.
"Os direitos, entendidos como ‘plural absoluto’, deveriam se realizar como um problema comunitário e de reciprocidade positiva, pelo qual os direitos dos outros seriam reconhecidos apenas sob a condição de reconhecimento simétrico e em função da redução da violência recíproca, dentro de um pacto que não poderia exigir [admitir] uma soberania”.
Esse modelo, derrotado pela história, se opõe fortemente à antropologia negativa do contratualismo e à forma Leviatã, em que o estado se coloca como um terceiro apto a gerar segurança jurídica e paz entre homens que não conseguem resolver seus problemas.
Passados alguns séculos desde as grandes revoluções jurídicas da modernidade, o esfacelamento ético-moral da sociedade (quanto menos prevalece a ética social, mais o direito se torna necessário para estabilizar as relações e condutas humanas), a intolerância oriunda dos maniqueísmos e o excessivo apego ao judiciário como superego da sociedade (afinal não conseguimos resolver pacificamente nem a guarda do nosso animal de estimação, tendo que recorrer ao juiz para que ele estabeleça a guarda cão-partilhada, como tem se tornado comum nas ações de divórcio) são sintomas evidentes de esgotamento do atual modelo.
E, para resolver esses problemas, de nada adiantam reformas processuais — logo o fórum estará congestionado de novo. Daí a atualidade da advertência do professor italiano: ou repensamos as relações jurídicas a partir de maior simetria e responsabilidade recíproca pelos nossos atos e pela guarda primária do direito do próximo, enquanto expressão maior da fraternidade, ou possivelmente, não haverá futuro para o direito. Em nome da Coluna, desejo um excelente 2015 a todos!
MARRAFON, Marco Aurélio. A fraternidade como valor universal: breve diálogo com Eligio Resta sobre o futuro do direito. In: AVELÃS NUNES, Antonio José. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coords). O direito e o futuro, o futuro do direito. Coimbra: Almedina, 2008. p. 431-444.